Entrevistas Paulo Bastos - Mestrado

Entrevista – Chico Gouveia – 23/03/2018

NOME: Chico Gouveia

RESIDENCIA: Rio Tinto, Gondomar

NATURALIDADE: Porto

 

Que modelo(s) de cavaquinho toca? E com que afinações?

Toco com três cavaquinhos minhotos, um com mais de 30 anos de Domingos Machado, outro integralmente em tília de Alfredo Machado (que só uso em estúdio) e ainda um terceiro de António Teixeira da Silva (Amarante). Toco na “afinação combinada”: Mi 4, Dó#4, Lá3, Ré4, também conhecida como a afinação do “requinto”.

 

Há quanto tempo toca cavaquinho? Como é que tudo começou? (pequena biografia no que diz respeito/orientada ao cavaquinho)

Iniciei-me a tocar na oficina de Domingos Machado, em Tebosa (Braga), há cerca de 40 anos, quando a comecei a frequentar e a interessar-me pelos cordofones populares portugueses. Fui lá uma vez pela mão de meu pai que era amigo dele, e fiquei fascinado por aquele mundo que desconhecia. Fiquei amigo do Mestre Domingos, e era visita assídua da sua oficina, onde conheci muitos tocadores, onde se discutia muita música, e onde fiz grandes amigos e aprendi muito sobre a nossa música popular. Eu tinha passado por alguns grupos de Rock dos anos 60/70 na cidade do Porto. Depois comecei a tocar guitarra portuguesa, num exemplar construído por Mestre Domingos Machado. Fiz dois discos de originais com ela, e depois comecei a estudar os cordofones. Pelo caminho ficaram alguns discos de braguesa e cavaquinho, em edições de autor.

 

O que o fascina no cavaquinho português particularmente? O que o faz apreciar e escolher o instrumento para se exprimir artisticamente?

Apesar das suas supostas limitações, verifiquei que se podia tocar quase tudo nele, inclusive temas clássicos, desde que fossem bem adaptados. Foi por aí que comecei e, só depois, me integrei no folclore e a tocar temas populares. É um instrumento muito “brilhante”, com uma técnica de rasgado que lhe dá uma identidade própria, especialmente quando aplicada ao vibrante folclore minhoto.

Impressiona-me a sua peculiar vibração e as suas quase inesgotáveis possibilidades, aparentemente impossíveis num instrumento tão pequeno, com apenas 4 cordas e uma escala com 12 pontos somente.

 

Quais as suas referências e influenças musicais mais importantes na abordagem ao cavaquinho? E qual a sua importância?

Para mim, o grande mestre percursor do cavaquinho foi Bernardino Silva, recentemente falecido com quase 100 anos, que era de Ferreirim (Braga). A técnica dos rasgueado foi cultivada por ele e foi ele que a legou aos outros tocadores. Não quer dizer que não houvesse mais tocadores, com qualidade, mas ele era o que mais se destacava.

Claro que, posteriormente, o disco do Júlio Pereira de 1981 foi importante no sentido da divulgação e expansão do instrumento. Especialmente pela forma inteligente de abordar o instrumento, isto é, evidenciando as suas características sonoras muito peculiares como solista.

 

Que outros instrumentistas/tocadores solistas de cavaquinho conhece que considera relevantes?

(Entenda-se como solista o instrumentista SOLISTA que faz um concerto do inicio ao fim em que o Cavaquinho é o ponto central/solista ou o instrumentista que tenha editado/gravado um ou mais CDs em que o cavaquinho é o ponto central/solista em todas as músicas ou quase na totalidade delas (quando se refere ponto central/solista pretende-se dizer instrumento que toca a solo sozinho ou que tocando em grupo faz a parte mais relevante e importante da música, ou seja o que típicamente se chama a melodia/parte principal)

Amadeu Magalhães é, quanto a mim, o melhor executante actual de cavaquinho. Trouxe para ele as técnicas dos instrumentos dedilhados clássicos e soube fundi-las sem choque cultural. No seu disco “O Cavaquinho do Amadeu”, colocou a execução técnica do instrumento numa bitola muitíssimo elevada. Júlio Pereira, que é outro músico fantástico, é uma espécie de patrono do cavaquinho pelo muito que se lhe deve na sua divulgação. Editou em 2015 um disco (cavaquinho.pt) onde, para além de tudo, apresenta algumas inovações de natureza rítmica muito oportunas, testando novas abordagens do instrumento. Os seus espectáculos actuais são muito cuidados e com grande qualidade. Mas há já muita gente a tocar muito bem e a editar, como o Luís Peixoto, com uma visão mais contemporânea, ou Daniel Pereira, com uma visão mais tradicional e mais ligada ao canto, mas todos com excelentes trabalhos. Saliento ainda um disco recentemente editado pelos Palankalama, chamado Boca de Raia, com uma abordagem muito interessante do cavaquinho, integrado num quarteto com bateria, contrabaixo e viola. Mas, como disse, há muita mais gente a tocar muito bem e cada vez melhor.

 

Que associações conhece ligadas à música onde o cavaquinho seja um interveniente de alguma forma? Quais?

Gostava de realçar a importância que as Universidades Seniores têm tido na divulgação do cavaquinho. São milhares de executantes por todo o país. Mas há muitas escolas sedeadas nas Juntas de Freguesia, em Associações, Grupos de Folclore, etc. Nunca se viu tanto interesse pelo instrumento. Há ainda o Museu do Cavaquinho, a instituição mais representativa na divulgação do instrumento, e que tem feito um trabalho notável a todos os níveis: divulgação, inventariação de tudo o que diz respeito ao instrumento, edição de discos, exposições, etc.

Não poderia esquecer também o que se passa nos Açores e na Madeira que seguem anos à frente do Continente no ensino dos seus cordofones regionais e que constituem um exemplo que o Continente devia adoptar.

 

Que repertório utiliza nos seus projetos em que inclui cavaquinho? Desenvolveu algum repertório original/arranjos para Cavaquinho Português? Pode por favor enumerar aqui? Pode também fornecer partituras ou áudio ou vídeo ou link de internet para estes elementos multimédia?

As minhas actuações não são somente com cavaquinho mas com outros instrumentos como a braguesa e a amarantina. No cavaquinho toco preferencialmente temas originais meus ou adaptações de peças de música clássica mais popularizada. Toco cada vez menos folclore. No meu canal no YouTube há lá mais de 70 vídeos com execução de vários instrumentos, incluindo o cavaquinho, e a tocar essas peças clássicas devidamente adaptadas. Aqui vai o link: www.youtube.com/user/WsongwriterW

 

Que técnicas utiliza no cavaquinho português? Quais das mesmas são as que utiliza com mais frequência?

Para além do rasgueado convencional polegar/indicador, utilizo também o “rasgueado rodado” (uma ideia minha que está explicada no meu canal), e vários tipos de ponteado e dedilhados. A minha formação em guitarra clássica e guitarra portuguesa permite-me abordagens técnicas diversificadas.

 

Considera que o Cavaquinho Português é um instrumento levado suficientemente a “sério” nos diferentes meios musicais?

No nosso já é, e já se assume como instrumento principal ou de relevo. No estrangeiro acho que ainda há muito para fazer.

 

Acha viável uma carreira de músico solista especializado e fazendo carreira apenas e só no cavaquinho português (sem necessitar de tocar mais nenhum instrumento)?

Sinceramente, acho que não. Hoje em dia um músico tem de ter uma grande abrangência instrumental e grande preparação musical global. Para além de ter de dominar diversas técnicas de áudio, de produção e edição, etc. Como solista de cavaquinho, permanentemente, isto é, como instrumento para toda a vida, acho que não. Um músico que decida enveredar por uma carreira deste tipo, tem que pensar seriamente na internacionalização e entender que está num mundo globalizado. Só a essa escala conseguirá sobreviver, porque o nosso país é muito pequeno e o mercado é insignificante. Além disso a divulgação nos “media” portugueses, nomeadamente nas televisões (e especialmente a RTP porque era suposto fazer serviço público), é nula. Não dedicam nem um minuto das suas programações à divulgação da nossa música étnica, passando ao lado da nossa música popular, ignorando-a, o que, à luz da defesa da cultura portuguesa, é uma atitude lamentável. O caso da RTP é mais flagrante, porque tem obrigações culturais e é paga por todos nós. Mas eu sou um amador, no sentido mais amplo e literal, pelo que a minha visão sobre este assunto em particular, pode ser demasiado distante e calculista. Mas há coisas maravilhosas e fantásticas que estão a acontecer na nossa música popular, e as televisões nem dão por nada.

 

Quais as dificuldades que teve (ou acha que teria) ao tentar ser um músico solista de cavaquinho?

Imensas, por tudo o já disse. O nosso mercado não absorve espectáculos com regularidade e permanência temporal capaz de sustentar um músico com estas características. Se insistisse, teria de encarar seriamente a internacionalização, procurando agenciamentos compatíveis à escala global, procurando também penetrar nos órgãos de comunicação especializados internacionais (e não só), e tentar editar com a chancela de uma grande editora. Provavelmente teria de equacionar a hipótese de estar mais tempo no estrangeiro do que em Portugal. Mas isto é meramente especulativo porque, como disse, a minha visão não é de pormenor, mas sim ampla. Estou de fora do processo profissional e isso dá-me outra visão das coisas. Não sei se mais exacta, se mais errada. Mas também não sei se nestas análises, o distanciamento não será uma vantagem.

 

Quais as facilidades e vantagens que considera ter (ou que pensa que teria) como músico solista de cavaquinho?

Como já disse, o cavaquinho é um instrumento que se pode assumir como principal. Mas para que um projecto só com o cavaquinho solista vigore e tenha sucesso, é necessário ter um espectáculo bem montado, apelativo, e ser acompanhado por edições musicais que justifiquem. O cavaquinho só por si, pouco pode fazer. Tudo depende da forma como o “ornamentamos”, como o integramos no conjunto. E isso tem de ser feito muito bem para que ele sobressaia e se assuma como principal.

 

Considera que faz sentido explorar o cavaquinho português como instrumento solista? Porquê?

Claro que faz. Porque é um instrumento como qualquer um, e qualquer instrumento pode ser solista. Até um bombo.

 

Que acha da utilização da nomenclatura Cavaquinho Português para de forma agregadora denominar e agrupar todos os modelos de cavaquinho português (modelo minhoto e diferentes modelos urbanos do continente e ilhas)?

Não tenho nada a opor. É uma forma de simplificar e de tornar a mensagem mais apelativa e com maior facilidade de assimilação. Na Índia toca-se “cítara”, mas a cítara indiana engloba um mundo impressionante de instrumentos de corda. Se se fossem a designar todos, seria impossível distingui-los. Assim, foi mais fácil. Acho que não devemos complicar o que é simples.

 

Como vê o futuro do cavaquinho português enquanto instrumento solista?

Vai continuar a evoluir e a entrar no dia-a-dia das pessoas e da nossa cultura, mas cada vez mais distanciada do folclore. Cada vez vão aparecer melhores tocadores e cada vez mais originais. Acho que, sob este aspecto, são boas notícias.

 

Que projetos tem para o futuro no que diz respeito ao cavaquinho Português?

Talvez a edição de um disco lá mais para a frente. Em 2008 editei um disco sobre a viola toeira, em 2016 sobre a braguesa, e este ano será lançado, em Maio, um sobre a Amarantina. Sempre quis fazer um disco com cavaquinho. Quando conseguir desenhar-lhe um projecto que eu considere minimamente consistente e original, avanço.

 

 Que assuntos gostaria de ver estudados sobre o cavaquinho português?

Sinceramente, acho que o caminho que está a seguir é correcto, é o possível, e já abrange muita gente com formação e, de uma maneira geral, a sua continuidade e evolução está assegurada. Penso que o cavaquinho vai seguir o seu rumo natural, abrangerá outras vertentes musicais, evoluirá como tudo. O que aconteceu até agora é fantástico e o que vem a seguir só pode ser melhor, mas é preciso tempo para que os projectos se consolidem.

 

Que sugestões tem para dar?

Há, contudo, algo que me assusta, e ainda em complemento da resposta anterior. É o facto de haver ainda muitos “professores” e “formadores” de cavaquinho, um pouco por todo o lado, e sem qualquer preparação musical nem sabedoria, nem pedagogia para ensinar. Mas ensinam. E isto por vezes está a desmotivar alunos, a criar conflitos e a estagnar alguns nichos da sua evolução. O cavaquinho é um instrumento como outro qualquer e necessita de ser ensinado dentro dos padrões que definem o ensino dos instrumentos de corda dedilhada. E muitas das vezes está a ser ensinado como um instrumento de “ramaldeira”, um acessório, mero acompanhante do canto. E isto é muito negativo porque, de um momento para o outro, e só por saber fazer dois ou três acordes, já se é “professor” de cavaquinho. E isto é menosprezar e desrespeitar o instrumento. E, principalmente, os alunos.

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